Dom Quixote não sai do lugar. Bentinho está devagar. Raskolnikov e Macunaíma ainda dormem no sofá da sala. Uma das queixas mais recorrentes durante a pandemia é a dificuldade de concentração em leitura. “Travados” ou “presos” nas primeiras páginas, leitores confessam falta de foco para seguir adiante.
O psicanalista Newton Molon, de 52 anos, é quem descreve em detalhes essa sensação de falta de aptidão ou tempo para leituras mais dedicadas. “No começo da pandemia, cheguei a experimentar algumas semanas de aumento de produtividade em tarefas intelectuais como a escrita, a leitura e o estudo. Cheguei a pensar que finalmente sairia de Os Caminhos de Swann e percorreria o trajeto todo de Marcel Proust. Também achei que daria para aprender russo e aperfeiçoar o inglês”, afirmou.
Mas durou pouco a sensação. “Com um mês em quase absoluto confinamento, comecei a notar o início de um desconforto interno, uma inquietação persistente, uma certa irritabilidade, uma forma de angústia que reduzia a capacidade, ou o desejo de concentração. De uma média de 300 páginas por semana, fui reduzindo significativamente o ritmo de leitura, a ponto de atravessar semanas em que um capítulo de qualquer coisa parecia tarefa impossível.”
Diferentemente do que muitos imaginam, sair de casa era um fator fundamental para o fluxo de leitura. “Eu lia muito no transporte público. No trem ou no metrô, eu estava sempre lendo. Esse tempo de deslocamento era o meu tempo de leitura. O horário de almoço, no meu trabalho, também era dedicado à leitura”, contou a jornalista Gabriela Santos, de 28 anos. “No começo da pandemia, eu me sentava para ler, tentava me concentrar, mas, em pouco tempo, eu tinha que voltar para o início da página porque tinha perdido algo”, completou.
A psicóloga Tatiana Chain Fernandez, de 53 anos, tem passado por diversas fases durante a pandemia. Tentou ler contos, romances e clássicos, mas, quando se dava conta, estava com o pensamento longe. “Tinha uma sensação de que estava perdendo tempo lendo coisas muito distantes daquilo que estava vivendo”, disse. “Meu ritmo de leitura melhorou quando escolhi livros que tinham a ver mais com reflexões sobre o meu momento de vida”, afirmou. Como psicóloga, Tatiana acredita que a ansiedade que vivemos por conta da covid-19 cria uma aceleração, uma inquietação, um excesso de estímulo que não beneficia a leitura.
Claro, nem todo mundo está “travado” ou sem foco para ler. Para algumas pessoas, o efeito da pandemia e distanciamento social foi exatamente o contrário. “Estou lendo muito mais. Antes, eu tinha muita coisa para fazer na rua. Ia a exposições, ao cinema e saía para ver os amigos. Agora, compro livros pela internet e acho uma delícia ficar lendo em casa”, contou a figurinista Julia Alcântara, de 40 anos.