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Além da brecha legal, um compromisso

A participação popular, em um olhar mais amplo em sua historicidade, é para os brasileiros um fio de prata que se aproxima mais da ruptura do que de sua firmeza e constância. Sempre existiu condutos de luta, participação e brechas legais, ainda que o tratamento fosse pelas forças de reação, a truculência seria a materialização dessas forças. A contar do início da República, pelo olhar de Aristides Lobo que afirmou que o povo assistiu bestializado é sintomático de algo. Ao mesmo tempo em que o sintoma toma uma figuração clara, que a nossa república foi um devaneio de instruídos, quase um subjetivismo idealista do positivismo militar, os projetos e as lutas dos excluídos vindas de um Império ruído foram passados aos republicanos como um objeto inanimado. Mas não se sabia o que fazer com o povo miúdo. Mas a cara militarizada da nova República tropical foi a mesma que virou para algum tipo solução dada pela participação popular.

Mas passados os anos, e se ajuntarmos as cartas constitucionais brasileiras, veremos que algum intento de ampliação de participação popular é mínimo se compararmos ao lugar do privilégio de pequenos grupos que arrastaram a política para si e para seus pares. Uma experiência democrática, próxima ao formato atual, foi de 1946 até 1964, encerrado por uma articulação militar, midiática e setores conservadores civis personificados no empresariado brasileiro. Mesmo assim, atentados contra a participação popular mais ampla, em nome de um suposto medo comunista, em 1961 foram constantes. Tentaram até um malfadado parlamentarismo que foi derrubado em um plebiscito em 1963. Mas, o privilégio das minorias, talvez quase oligárquicas, foi confirmado três anos depois: mais uma vez a participação popular direta sucumbiu. Ao percebemos hoje em 1964 houve um atentado não contra a democracia apenas, mas um aborto de aprofundamento democrático de fato, reformas que atingiriam aqueles que mais necessitavam, com a inclusão da maioria analfabeta, faminta, sem casa, sem terras e submissas às diversas formas de poder de uma parcela diminuta de homens.

Hoje, ainda resta em nós sombras desse direito cerceado, movimentos sociais organizados são colocados em um liquidificador e homogeneizados pejorativamente. Como se a luta por aprofundamento de direitos fosse um crime. Uma difamação pelo ódio que não acrescenta em nada, só vulgariza-se aqueles que lutam pela prática efetiva da democracia. Parece que mesmo depois de quase 25 anos alijados do poder, depois de uma ditatura, ainda insistimos que organizar-se é uma tarefa inglória e desinteressante. Nem com a gestação, ainda em 1987-1988, da nossa atual Constituição a assimetria entre participação popular e políticas públicas parece ter um corpo atlético e não esboça fadiga. Parte dessa descompensação participativa é visível nas letras mortas de inúmeros artigos constitucionais que, por desinteresse de uma minoria, insiste em deixá-las no ostracismo. Nesse jogo, os polos magnéticos atuam de forma repulsiva, a lei que nada habilmente no desuso.

Participação é consciência de si, de seu lugar social e, de alguma maneira, uma empatia esperançosa que o coletivo pode ser melhor do que os interesses no nosso cadinho conformista e individualista. A Constituição veio com holofotes esperançosos, entretanto uma transição xoxa em que a participação popular, de vários movimentos sociais organizados, atuou sim, com a exposição de suas demandas, porém a sistematização foi conservadora. Um acordo entre cavalheiros. A nossa Carta Magna nos deixa um legado depois de exatos 26 anos: artigos, parágrafos e incisos por cumprir, instrumentos de participação popular em potência e refluxo de nossa inabilidade em nos organizar.

Com as eleições diretas para presidente em 1989 a democracia supostamente voltou. Poderíamos descrever longamente o que é democracia, tanto em sua conceituação estruturante no tempo, quando de sua realidade formal e informal de nossos dias. Mas cabe uma apenas, por hora, demandar que democracia não é uma brecha, mas um exercício de autoconsciência para a coletividade: organizar-se e prática efetiva. Entretanto, como conciliar uma prática efetiva com organização? Difícil tarefa quando nosso cotidiano nos afoga, um dia-a-dia que nos sufoca, nos leva para a frieza abissal. Em tempos que o pitaco político é um efeito mais virtual que ganha corpo no feed das redes sociais, é também uma incógnita para o nosso cotidiano, sendo constrangido a todo tempo em sua efetividade.

A Constituição de 1988 garantiu alguns instrumentos desde a inciativa popular, como no artigo 61 § 2 da Constituição de 1988, regulamentado pela lei nº 9.784, de 1999, que prevê as regras para a proposição de leis partindo da população (leis de iniciativa popular), até a audiência pública, que possui um caráter variado de acordo com os regimentos internos de cada câmara legislativa municipal. O instrumental legal que garante as participações populares, com o tempo, foi assumindo um caráter variado devido às várias formas de validação em nosso corpo legal. Recentemente, com o intuito de promover uma reforma política mais profunda foi requerido e organizado por inúmeros movimentos sociais o “Plebiscito Popular” (http://www.plebiscitoconstituinte.org.br) por uma constituinte exclusiva e soberana que inclui inúmeros temas: desde a proposta para a alteração do sistema político-partidários, interferindo diretamente nas regras das eleições, para tornar o embate político mais democrático e menos dado aos marqueteiros e ao poder econômico até sobre politicas públicas como a reforma agrária. Uma ação que procura resgatar um valor de participação popular mais direto e menos representativo.  Essa inciativa foi informal, mas com intensa mobilização e conscientização da necessidade de reformas em nosso país, já que um plebiscito de consulta em todo território nacional que mova a Justiça Eleitoral e tenha validade legal somente o Congresso Nacional pode fazer. No intuito de serem ouvidas as pautas das reivindicações do Plebiscito Popular por uma constituinte soberana e exclusiva, com suas 7.754.436 assinaturas coletadas em todas as regiões do Brasil, durante a primeira semana de setembro, foram entregues à Presidenta Dilma no dia 13 de outubro em Brasília.

As discussões sobre as formas de participação popular em âmbito nacional são frutíferas, porém virtuais. Parecem que tais temas plainam sobre nós, ainda que nos atinjam diretamente. Mas são nos municípios onde a convergência de qualquer ação popular no plano nacional ganha materialidade. O município é a materialização das ações federais e estaduais. E, evidentemente, cada município demanda em si suas necessidades particulares. Dessa forma, a população de cada cidade sabe muito bem do que é necessário. Mesmo assim, cada bairro também tem essa responsabilidade de pensar e conscientizar sobre si à medida que aumentamos essa escala da estrutura do nosso Estado. Quem melhor para saber que medida os poderes devem tomar senão um bairro ou uma comunidade com consciência coletiva de si?

Seguindo a constituição federal, o nosso município também prevê participação popular. O legislativo é um caminho. E com base nessas questões a audiência pública é uma ferramenta eficaz. A lei Orgânica do Município de Barroso não prevê as audiências, porém no Regimento interno da Câmara Municipal sim. Nos artigos 57-XIII e  65-II do Regimento Interno fica a incumbência da Câmara e suas Comissões organizar audiências públicas e também no trabalho conjunto com a sociedade civil.

Em nosso município a necessidade de participação não foge à regra e se impõe como uma necessidade. Nessa tônica, conversei com os vereadores Eduardo Pinto (Partido Verde) e Wanderléia Napoleão, a Deléia, (Partido Popular Socialista) sobre as possibilidades da integração Câmara Municipal com a população e os instrumentos de participação. Em um primeiro momento, o vereador Eduardo reforça que o primeiro motivo para que a participação popular seja uma prática efetiva deve partir da natureza do Legislativo municipal: “ele é a casa do povo” e “onde se toma decisões que interferem diretamente sobre a vida da população”. Portanto, existem meios pelos quais todos devemos participar, em especial as audiências públicas, pois “ela é o grande encontro dos vereadores com a população”. As audiências públicas são práticas com o intento de levantar de forma sistemática temas que interferem na vida da população de modo que nelas são discutidas desde temas de relevância comunitária às contas públicas. Eduardo Pinto acrescenta que obrigatoriamente ocorrem três audiências públicas por ano, parte da agenda da Lei de Responsabilidade Fiscal, referentes à prestação de contas do município.

Existem, portanto, outros instrumentos de participação popular, garantidas por leis municipais, que convergem para uma conscientização e busca de soluções conjuntas dos vereadores com a população. Hoje, em Barroso, como afirma Eduardo, existe a “Câmara Mirim” que consiste em estudantes assumir simbolicamente o posto de vereadores e com os poderes de indicarem pautas aos vereadores. Além disso, é uma forma de integrar a juventude com os assuntos da Câmara Municipal e despertar o interesse pela “coisa pública”. Nesse mesmo caminho no trabalho com a juventude, existe o “Jovem Legislador” no qual se mobilizam as escolas para estudar a “Lei Orgânica do Município” aplicando provas e premiando as instituições de ensino que obtiverem os melhores resultados. Como é um trabalho que envolve professores e alunos, a efetividade dessa forma de participação torna-se um canal de esclarecimento das funções da Casa Legislativa municipal entre os jovens. Assim, essas ações servem como formas pedagógicas de politização dos estudantes.

O vereador alerta também que em legislaturas passadas foram votadas leis que ampliam a participação popular como a criação da “Comissão de participação popular e legislação participativa” que estabelece as formas de organização da sociedade para integrar ao Legislativo e propor um trabalho em que se aproxime mais os vereadores das necessidades reais da população barrosense. Além dos instrumentos pedagógicos e legais, Eduardo Pinto também leva em conta que a área de comunicação da Câmara Municipal também ganhou corpo com a criação da “Rádio Câmara” que é transmitida on-line e traz uma maior comodidade àqueles que não podem se deslocar para a reuniões ordinárias às segundas e às quintas.

No fim de nossa conversa, pedi ao vereador que explanasse sua opinião sobre a necessidade de integração população com o legislativo. Ele acrescentou exemplos do ano passado e recentes sobre o poder de decisão da população, como em 2013, sobre as motocicletas 50 cc resolvendo o problema em parceria com a Polícia Militar. Um exemplo, por sua vez, de mobilização popular que se chegou a uma síntese útil a todos. Este ano, ainda em aberto, são os casos do co-processamento da Holcim e as possíveis contaminações derivadas dessa prática e das deficiências na distribuição de água no município envolvendo a Copasa que são assuntos que têm a necessidade de participação maciça. De forma conclusiva em sua fala o vereador diz que a pouca participação pode também levar à não solução completa de temas relevantes ao município. Como ele explana, é impossível para qualquer legislador saber de todos os fatos que afetam diretamente a vida das pessoas e, assim, a participação popular tem o poder de completar e trazer a realidade de cada bairro do município para concretizar ações de melhorias. Dessa maneira, dentro das competências legais dos vereadores, o trabalho conjunto e organizado da população com a Câmara concretizam ações diretas da comunidade.

Nessa mesma tônica a vereadora Deléia diz que a participação popular nos meios disponíveis nas Câmaras Municipais é um exercício de quebra de ideias que não contribuem para o debate político. Pela fala da vereadora, podemos exemplificar o chavão que “todos os políticos são iguais” e que isso deve ser ultrapassado para olharmos em direção de uma nova cultura política. Nessa sequência, Deléia acrescenta que participação popular efetiva indica uma mudança que: “não deve ser de cima para baixo, mas juntos” pensando também que “o voto é igual e tem o mesmo peso para todos, do presidente da república ao gari”. Nesse sentido a vereadora pondera que a participação popular coloca em jogo a própria representação na medida em que o cidadão participativo conhecerá de perto as questões que afetam sua vida. Afinal, o político, isto é, o vereador é um servidor do povo. Com esses elementos, a vereadora Deléia enfatiza que a mudança de consciência participativa e a sua consolidação, como prática das decisões coletivas, ultrapassa até o trabalho midiático e o excessivo uso do marketing político, pois o cidadão verá o que se faz na realidade. Além disso, participar significa colocar em jogo as intenções dos representantes eleitos, separando aqueles que de fato trabalham para o conjunto da população e aqueles que advogam em benefício próprio ou de um grupo político. E, por fim, estar junto da casa legislativa, em tom convocatório, a vereadora diz: “a participação popular ajuda aqueles vereadores que querem o bem para o seu município”.

De fato, pensar sobre a participação popular é buscar apoiar o nosso lugar em nossa comunidade. É um exercício diário e que supera qualquer derrotismo para a mudança das práticas municipais. Nesse sentido, podemos crer que a “representação” política ainda está muito aquém das necessidades reais da população. O voto, por exemplo, perde seu sentido com o quociente eleitoral e os projetos tornam-se coadjuvantes do processo eleitoral. As coligações assumem um caráter personalista e não estrutural. A tão falada “fidelidade partidária” não pode se resumir em alianças nominais, mas a convergência de projetos: unir pelo programa, pela percepção da realidade comum e não pelos possíveis benefícios pessoais que os convergirão caso sejam eleitos. Qualquer reforma política que cerceia a participação popular é continuísmo e manutenção de privilégios. Por outro lado, uma mudança política de fato amplia e amplifica a voz popular. Mas, antes, a “bênção” deve vir da consciência participativa, lutar coletivamente, não apenas uma brecha na lei.

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