As eleições de 2014 superaram em demonstrações nada criativas de como a euforia pode encarnar e se figurar nas conversas cotidianas. As redes sociais que nos digam. Mas o jogo da coerência conjunto ao exercício de pensar as profundidades das questões e o momento do país foram jogados para as margens. Os mais imediatistas querem que o futebol seja a referência comparativa, os relativistas constroem um discurso das mônadas em que o individuo e suas opiniões são um elo subjetivo cerrado em si (nada há além da minha opinião) e, além disso, para muitos dos que se posicionam restou o vulgo.
Os debates acalorados eram medidos pela ferramenta de compartilhar das redes sociais como uma metódica argumentação fordista e massificada. A facilidade do caminho mais curto em que a aparência física dos candidatos se torna o centro do debate superam os temas urgentes. Como se pisassem em poeira fina, cada um dos mais eloquentes defensores de lados, levantavam o pó para tornarem a sua própria visão turva. Corrupção… Ah famigerada! Como se ela fosse inventada ontem. E os termos? Muitos deles tomam uma consistência quixoteana (leiam Miguel de Cervantes, assim entenderão) e seus usos indiscriminados são alardeados nas suas acepções mais vulgares possíveis. A propaganda seduziu aos mais vislumbrados: verbos que dançam a dança das cadeiras. Quando a música parou restava o imperativo como termo comum; de compre! Para: vote! Um espelho deformador em que o personalismo nos delegou juras de amor àqueles a quem nos identificamos. A velha palavra ideologia agora assume um corpo material distante daqueles que a formularam, pois ela voltou ao campo das “ideias desencarnadas” e se tornou um espírito obsessor; ela não é mais a capacidade do homem em elaborar a consciência de si percebendo seu mundo material. Vista como entrave e nutrida em direção de seu abandono pela ilusão do individualismo e da indiferença. Suas formas vulgares que são visualizadas na narrativa amorfa e em nome de uma suposta “imparcialidade” ou “neutralidade”. Esse é o fetichismo do pronto e do acabado.
Poderíamos considerar então o pessimismo e anunciar a morte do debate? Não, pois os puristas tentarão: “um lugar pra cada coisa, cada coisa em seu lugar”. Mas ao contrário, elas foram dadas à desordem e são corpos vagando no espaço. As apropriações são livres, as ressignificações necessárias e o uso cotidiano uma faca cega. Mas sendo otimista podemos considerar o vulgar é um manjar para os analistas mais aguçados, para os que têm por necessidade e ofício o entendimento das coletividades. Em outro caminho serve como indicação para aqueles que não querem apenas ficar na superfície. Com esse fato, a simplificação, adequação das linguagens e o didático não se exorcizaram o vulgo. Este muito comum no jargão policial e na estereotipização de categorias estanques…
Antes fosse o tempo em que se discutia um projeto de Brasil estrutural e integral, agora são míopes e cegos. Quatro anos nos basta! O vulgo é a estreiteza do julgamento. Importam-se termos à revelia. Das partes, dos talk shows de apresentadores de qualidade duvidosa, superficiais, dos factoides e da ligeireza das questões agora são gritos reverberados. Em cascata somos afogados nos termos que criam repulsa entre si. Bombardeados terminologicamente somos pelos “neoliberais”, pelos da “direita” pelos “sovietes”, pelos “comunistas”, pelos “socialistas”, pela “ideologia”, pelos “bolivarianos”, pelos “capitalistas” e somem-se aos termos “articulares”, nas certezas das definições, “A direita” e “A esquerda”. Chega à fadiga de citações seguidas de et cetera. Mas qual a razão disso tudo? Fato é que a transposição direta dessas palavras, que pela sua elasticidade podemos chamar de “conceitos”, nunca foi saudável à história e ao entendimento da nossa linguagem nos usos cotidianos. Nada do conceitual é estático. Apesar de os conceitos terem uma relação próxima com seu tempo. Porém não é uma simples etimologia, esta é apenas a nata do leite e a cristalização do suposto correto, mas apenas uma via quando observamos o lugar social da palavra, seus usos e suas variações. Nenhuma palavra acompanhada de um conceito tem apenas um lugar, como o presentismo dos nossos dicionários. Elas têm uma relação mais estrutural do que pensamos nesse tempo, em que hoje a usamos pra algo, amanhã para outros. É o movimento caudaloso da língua. Porém, ainda que todas as palavras e todos os conceitos tenham o livre uso, eles têm limites de sua coerência. Um conselho válido é que a história é mudança, uma dinâmica das sociedades. Por isso, se acaso usamos certas palavras e conceitos de forma indiscriminada escorregamos no vulgo. Como exemplo, para não delongarmos, e citarmos apenas um caso, vejamos a palavra (conceito?!): “sovietes”.
Os “sovietes” assumiram uma tônica do vulgar típico nesses dias. Qualquer tentativa de organização pela consciência de conjunto, na falta de um nome próprio, recorremos à depreciação dos “sovietes”. Primeiro, em respeito ao momento ímpar da história russa no início do século XX, às bases teóricas (um salve a Marx e Engels!), às condições sociais de organização dos operários e à prontidão coletiva para defenderem-se da exploração pelo trabalho supostamente livre na Rússia czarista, devemos uma cautela ao se usar o conceito citado. Outra pela sua condição no tempo, ainda que amplamente citado, ela tem o poder de veto no seu uso. Nessa demonstração percebemos como a palavra muda, mas carrega algo de seu passado: o clima belicoso trazido da “guerra fria” entre as ideias que se polarizam. Pelos sovietes se proclama exageradamente e vulgarmente um possível golpe comunista como se estivéssemos nas mesmas condições políticas brasileiras dos anos de 1960. É perceptível tão claramente em muitos discursos vulgarizados na política atual. Os sovietes foram temidos, profanados e odiados, e ainda o são. O míope cita-os como um franco atirador e antes teme que caiamos na velha e morta União Soviética. Um contrassenso. Nossas condições são outras… Esse conceito continua com um sentido: o suposto medo de antes, da “comunização” do país, ainda movimenta os sentimentos, mas no vulgo. Obviamente poderíamos sim refletir sobre o lugar das palavras e conceitos na história enquanto um entendimento das sociedades. Sempre há continuidades nos conceitos, eles não se rompem tão facilmente direcionando para outros significados, são dinâmicos. Mas eles têm limites e não se deve fazer uma ligação sem saber o que de fato eles são e foram.
A transposição direta é criar um lapso temporal de nossa linguagem e tiramos qualquer sentido concreto de seu espaço de experiência. Mesmo se quisermos compreender o nosso momento político atual pelos “sovietes”, querendo usá-lo na mesma medida que se usou há mais de 50 anos, isso seria de uma pobreza explicativa manifesta, principalmente se o ligarmos àquele partido que assume o executivo federal. Ao fazer uma analogia poderíamos comparar à disfunção cognitiva de crianças que insistem em colocar blocos cilíndricos em buracos feitos para os blocos quadrados.
Esse é um conselho: evite o vulgo. Temores pirotécnicos incorporando um espírito que já não é mais. O vulgo é um retrato de nossa incapacidade de refletirmos e uma forma de nos cegarmos no óbvio. É uma automutilação da nossa capacidade de raciocinar. Mas se o termo é livre e podemos colocar os sovietes em qualquer tempo, evocá-lo para qualquer circunstância, e por consecução temê-los, que ressoemos: todo vulgo (queria usar poder…) aos sovietes!
Por Maurício Carrara
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