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Um minuto e quarenta e dois segundos. Este é o intervalo de tempo para uma mulher se tornar vítima da criminalidade em Minas Gerais. De janeiro a agosto deste ano, 206.392 mulheres foram alvos de ações criminosas em todo o Estado, o equivalente a 852 casos por dia. Os dados, do Observatório de Segurança Pública do Estado de Minas Gerais, contemplam crimes de ameaça, difamação, estelionato, furto, injúria, lesão corporal, roubo e agressão e comprovam a importância da existência do Dia Nacional de Luta contra a Violência à Mulher, lembrado todo 10 de outubro desde o ano de 1980.

Passados 42 anos do dia em que um grupo de mulheres se reuniu nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo para expor o aumento dos crimes de gênero no Brasil e começando esse movimento de luta lembrado em outubro, alguns passos foram dados, como a criação da Lei Maria da Penha e a caracterização do feminicídio, quando matar mulheres pelo simples fato de serem mulheres se tornou crime hediondo. Porém, elas seguem como as principais vítimas das mais variadas formas de violência no Brasil.

Em Minas Gerais, em oito tipos de crimes diferentes, os homens só foram mais vitimados nos casos de furto e de roubo, enquanto as mulheres aparecem como principais alvos em todos os outros seis crimes levantados. Para se ter ideia do quanto o gênero pesa no quesito vulnerabilidade no Estado, as mulheres foram vítimas em 74,5% dos 37.457 registros de vias de fato/agressão em Minas em 2022, com 27.909 de todos os casos computados. Além disso, elas também foram 70% das vítimas de injúria, 67% dos casos de difamação, 62% das situações de ameaças e 55% nos registros por lesão corporal.

“Ao longo dos anos, houve um avanço no contexto legal, a violência de gênero passou a ser mais debatida, inclusive em escolas, há um esforço para um atendimento mais humanizado das mulheres em equipamentos de segurança e justiça, mas a estrutura social ainda é muito patriarcal e machista. As mulheres ainda estão submetidas a uma visão de coadjuvantes no papel social, e muitos homens, nascidos e criados nesse contexto, acreditam ter o direito de domínio forçado dos corpos femininos. Essa visão ultrapassada e preconceituosa tem como reflexo violência e crimes de toda ordem contra as mulheres. Por isso a solução não passa apenas por criação de leis, mas por mudanças culturais, e urgentes”, diz o juiz titular do 2º Juizado de Violência Doméstica de Belo Horizonte e integrante da Coordenação da Mulher em Situação de Violência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Marcelo Gonçalves de Paula.

Para a delegada Amanda Pires, da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam), os números precisam ser analisados pelo contexto em que cada caso ocorre. No entanto, ela concorda que as mulheres se tornam mais vítimas devido à estrutura social, em que é comum a subjugação por gênero. “As mulheres estão mais suscetíveis a sofrer violência no ambiente doméstico, e, quase sempre, esses crimes estão associados à diferença de gênero e à relação de controle e poder. É querer dominar a mulher por ser mulher”, explica Pires.

A delegada Amanda Pires aponta que casos de violência ainda são subnotificados, já que muitas mulheres se sentem dependentes emocionamente e, em muitos casos, financeiramente dos companheiros e convivem com o medo de denunciar. Para ela, são necessárias mudanças principalmente em relação à educação e à criação de políticas públicas preventivas, como o empoderamento das mulheres em cargos ocupados majoritariamente por homens. “O fenômeno é complexo e não pode ser atacado só na área criminal. É preciso quebrar essa estrutura de poder marcada pelo patriarcado. O que a gente necessita é ter a equidade entre gêneros para evitar a violação e a reiterada retirada dos direitos das mulheres”, aponta.

Estrutura social que expõe mulheres

O levantamento do Observatório de Segurança Pública do Estado de Minas Gerais apontou que homens são vítimas mais frequentes de crimes patrimoniais, como furto e roubo, enquanto as mulheres são alvos da violência de gênero, como ameaça, difamação, estelionato, injúria, lesão corporal e agressão. No caso dos furtos, por exemplo, 57,27% dos 137.260 casos denunciados nos primeiros oito meses deste ano têm homens como vítimas. Entre os 22,9 mil roubos ocorridos no mesmo período, 13,4 mil, ou 58,5%, foram contra homens.

Segundo o juiz Marcelo Gonçalves de Paula, até nos casos em que os homens são mais vitimados do que as mulheres, o machismo tem certa influência. “Mulheres que crescem em uma sociedade em que há muitos riscos para elas acabam se expondo menos. O se preservar e a cautela já vêm na formação feminina como estratégia de sobrevivência. Então, menos expostas, as mulheres acabam menos vitimadas nesses casos. E ainda tem a questão da necessidade que alguns homens têm de expor aquilo que conquistaram também como resultado dessa sociedade em que os homens disputam influência entre eles. Então eles acabam tendo esses bens expostos mais subtraídos como uma consequência desse comportamento”, explica.

Para a professora de ciência política e direitos humanos Daniela Mateus de Vasconcelos, os números, de fato, dizem muito sobre a sociedade brasileira, que, segundo ela, é “historicamente marcada por desigualdades sociais”. “A gente sempre viu a mulher como dependente econômica, dentro de casa. Ela sempre precisa abrir mão de algo para conseguir se profissionalizar ou adquirir bens materiais. Essa pirâmide social brasileira, que reproduz o privilégio masculino na aquisição de bens de valor, ajuda a justificar esse contexto”, explica a especialista. De acordo com Daniela, as mulheres, principalmente negras, estão na base dessa pirâmide social, o que justifica a exclusão generalizada e a exposição a violência. “A sociedade brasileira é marcada por subordinação e desigualdade. Se a gente pensar como um todo, a conquista de direitos das mulheres é recente, na segunda metade do século XX. Todo esse contexto contribui para que as mulheres ainda sejam vítimas”, argumenta.

Ainda conforme a professora, outras violências, tais como a desigualdade salarial e ocupacional no trabalho, além de assédio, seja moral ou sexual, também são comuns entre as mulheres. “A gente tem ainda a esfera de exclusão do cenário político. Não precisa de dados para se tornar perceptivo. É só você ver a foto da ONU, por exemplo, que você percebe que tem poucas mulheres”, disse. Para a especialista, essa exposição à violência não pode ser compreendida por um único aspecto. Segundo ela, são vários os fatores que contribuem para tal cenário. “Tem também a dupla jornada. Isso ainda é uma carga feminina. O que preocupa nisso tudo, também, é que muitas vezes as mulheres são culpadas por essa violência”, completa Daniela.

Via O Tempo

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