A descoberta aconteceu por acaso. L *, 27, estudante de enfermagem, passou a ir à casa do namorado, que estava em São Paulo para uma viagem de negócios, para cuidar dos animais de estimação dele. Como precisava enviar um arquivo para colegas de um grupo de trabalho da faculdade, ela decidiu, já que o equipamento estava disponível, usar o computador pessoal do rapaz. A surpresa veio ao ligar o dispositivo, quando descobriu a assinatura de um serviço camming – modalidade de pornografia em que modelos se exibem ao vivo via webcam, realizando shows de teor sexual.
A primeira reação de L foi sentir-se enojada e chocada. Depois, ficou possessa: se sentiu traída após todos os anos de companheirismo e, por isso, pensou em romper com o companheiro. Entretanto, até o retorno do namorado, na semana seguinte, qualquer resquício de ressentimento já havia se dissipado. Ocorre que, no decorrer dos dias, L foi pensando consigo mesma e concluiu que, afinal, ela também consumia material pornográfico ocasionalmente e não lhe parecia justo encarar aquela situação como algo tão grave. Optou apenas por conversar com o seu parceiro para que tornassem mais explícitos os acordos entre eles, o que seria ou não aceito.
Todo entrevero aconteceu antes de a pandemia da Covid-19 e as medidas necessárias a seu enfrentamento condicionarem muitos casais a dividir o mesmo teto pelas 24 horas do dia. Se a descoberta ocorresse neste período, L acredita que a situação teria se tornado insustentável. O temor dela, todavia, é realidade de muitos outros casais.
Ainda que não existam pesquisas sobre o tema, a experiência clínica de profissionais da psicologia indica: a traição vem sendo uma pauta recorrente em atendimentos nos últimos meses. Algo que parece paradoxal, pois, como demonstram indicadores de circulação nas cidades, a população tem ficado mais tempo em casa neste período. Não por acaso, um tema que se tornou mais frequente nas consultas conduzidas pela psicóloga e sexóloga Enylda Motta foi justamente a infidelidade praticada por meio de redes sociais e de aplicativos. “Aumentou bastante (os relatos de traição online), assim como as descobertas dessas traições. Nos atendimentos, o assunto aumentou muito, tanto no desejo de trair quanto na traição em si”, revela.
Mas, a exemplo do autoexame de consciência de L , como conceituar o que é ou não traição? E como seguir em frente depois de um flagra? “Em primeiro lugar, é preciso ter clareza de que não existe um conceito universal, e, falando superficialmente, a traição estaria ligada a um descumprimento do contrato estabelecido pelas pessoas envolvidas na relação”, baliza o psicólogo Rodrigo Tavares Mendonça, especializado em psicoterapia de família e de casal. “Todo relacionamento de longo prazo tem seu acordo, na maioria das vezes implícito – o que avalio como um erro: tornar explícito o que é ou não aceitável ajuda os parceiros a se posicionarem dentro do relacionamento”, complementa.
Mendonça aponta que, na maioria dos acordos, está implícita a fidelidade. “Mas, além de estabelecer se é necessário ser fiel ou não, é preciso definir o que significa essa fidelidade, o que vai variar muito de casal para casal”, analisa.
O espectro do que é considerado uma traição, afinal, é amplo: para alguns, o flerte virtual, mesmo sem envio de material sexual, pode ser encarado como problemático, para outros uma relação de amizade muito íntima e que é tratada como segredo por uma das partes pode ser encarada como inconveniente, por exemplo. Entre outras diversas formas de entendimento, há também aqueles que consideram o consumo de pornografia como algo que potencialmente vai desestabilizar a relação.
O psicólogo alerta ainda que diferentes situações implicam diferentes pesos para a traição. “Muitas pessoas que vão considerar a traição sexual como um ponto mais delicado. Tem outro grupo que vai considerar como mais grave a construção de vínculo afetivo”, situa. “Há também casais que aceitam uma terceira pessoa na relação, mas consideram traição uma aproximação romântica, e também aqueles em que a construção do vínculo afetivo não vai ser considerada traição”, aponta o psicólogo, dando conta da diversidade e complexidade do tema.
No caso das relações virtuais, que podem culminar tanto em trocas sexuais quanto em trocas afetivas, “parece natural que a pessoa que vive mais tempo conectada dê mais peso à traição virtual”, diz. “Com a virtualidade ganhando mais espaço na vida dos indivíduos, é natural que mais situações assim apareçam”, pondera ele, asseverando que “relacionamentos virtuais são tão reais e legítimos como os físicos e envolvem os mesmos contratos de um namoro, sendo relações afetivas que não podem ser menosprezadas”.
Medo do fim
“Algo que costuma impactar a harmonia conjugal é a percepção que o relacionamento está em risco, algo que pode ser adoecedor para a pessoa que nutre esse sentimento e que pode dinamitar a dinâmica a dois”, examina o psicólogo Rodrigo Tavares Mendonça, lembrando que, de maneira geral, toda relação está em risco: “Não há uma garantia absoluta, mas há confiança, que é fundamental”.
Ele situa que não é só a traição propriamente dita que vai provocar esse medo, mas também comportamentos tidos como de risco – como o hábito de uma das partes de curtir e comentar fotos de outras pessoas ou de manter conversas de assuntos aleatórios ou específicos.
Para alguns, o prazer solitário de uma das partes, por exemplo, é motivo pânico. “O consumo de material erótico e pornográfico, assim como a masturbação, pode fazer parte do cotidiano da pessoa. Se há equilíbrio, a prática pode até fazer bem, pois incentiva o desejo, uma vez que o sexo começa no cérebro, na cabeça. Mas, sim, uma pessoa pode se sentir traída quando descobre que o parceiro ou a parceira está consumindo esse tipo de conteúdo”, comenta Enylda, que aconselha: “Conversar a respeito é muito importante”.
Em geral, indivíduos menos autoconfiantes se sentem em risco em mais situações e, por isso, tendem a pensar que o comportamento do parceiro ameaça o relacionamento. “É preciso certo equilíbrio: aceitar o risco, pois todo relacionamento pode um dia acabar, e, ao mesmo tempo, ter autoconfiança e ter confiança no parceiro”, aconselha Mendonça.
O medo de que o namoro ou o casamento esteja por um fio vai ser ampliado diante de evidências ou do flagrante de uma traição. “Depois disso, a vítima dessa quebra de acordo fica sensível, desconfiada e precisa de um tempo para restabelecer a confiança. Neste período, a privacidade e a intimidade do outro pode ser afetada”, comenta a psicóloga Enylda Motta. “Mas isso passa, e os laços podem ser restaurados a partir do diálogo e de acordos mais claros”, diz.
Vistas como reações naturais, a vigilância e o ciúme despertados pela descoberta de uma situação de infidelidade podem acentuar a crise conjugal. “A perda de liberdade pode acarretar uma sensação de sufocamento. Então, o parceiro vai deixando de ser a pessoa capaz de ampliar suas possibilidades de diversão, de conhecimento, de troca e passa a ser visto como um empecilho, uma pessoa que está sendo um fator de limitação”, examina o psicólogo.
Para não entrar nesse ciclo, o psicólogo sugere que a pessoa traída busque se afastar de ideias preconcebidas – como ligar infidelidade a uma falta de amor ou, em relacionamentos heterossexuais, acreditar que é dever da mulher “segurar o homem”. Ao tomar distância dessas noções, avalia Mendonça, será possível melhor compreender o que aconteceu concretamente, o que desencadeou aquele comportamento e tentar entender o que deve ser aceito e o que não deve ser aceito na relação.